domingo, 9 de novembro de 2008

Saudade de você

A distância é uma lente
que amplia a saudade.
É na distância que percebo
quanto a saudade de você é pura,
é cristalina, é exata e tem a minha forma.
Eu a visto quando você parte.
E fico assim, nu.
Envolto apenas pela nuance de sua presença.
A sua saudade.

sábado, 25 de outubro de 2008

embriaguez

caído bêbado recebi
fata morgana em seus dedos de vinho
me envenenando de prazer submisso
- quem é a mais bela?
- você
menti a mais pura verdade
por que não?

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

a lua na sarjeta

regressava trôpego
o caminho sempre igual
- tique de bêbado -
e a noite se arrastava
com a lua na sarjeta

sábado, 18 de outubro de 2008

A mais bela garota da cidade

Ela era a garota mais bela da cidade.
Tinha um particular modo de ver a vida
como se a vida pudesse ser vista de um modo particular.
Talvez por isso tanto a desprezassem e tanto a amassem,
afinal era ela a garota mais bela da cidade.
Não porque escondesse seus verdes olhos em covas profundas, negras e etílicas,
mas porque vivia e viver não é permitido
quando se é a mais bela garota da cidade.
De pequena estatura, realçava uma cristal fragilidade de que muitos se serviram,
sem saber que era ela quem se servia.
Nada mais normal para aquela que era a garota mais bela da cidade.
Corrompida por hábitos e vícios,
tornou-se decadente e genial, marginal e única,
com a pureza bizarra só de quem é bela -
a mais bela garota da cidade.
E bela estava quando foi retalhada e morta,
abandonada no ermo da cidade, como se só assim existisse.
Triste fim para nós que permanecemos mais feios.
Morreu como só morre a mais bela garota da cidade.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O gato

Equilibrado na cerca, estático, o gato observa
aquele que invadiu seu domínio.
O lixão mais gordo do melhor beco da cidade.
Eriçado, arrisca um confronto e recebe uma lata como resposta.
Já não bastasse tudo mais, ele agora quer também suas próprias sobras.
Vendo-o revirar o latão até o fundo e sentindo o estômago doer, reclamou:
Espero ao menos que ainda os ratos me sobrem.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Cães e gatos.

Estava parado a minha frente, com aquele jeitinho redondo de se portar. Fiquei irritado.
- Ei.
- O que é desta vez? - acendendo um cigarro só para ver a fumaça subir.
- Desculpe pelo que sou. Te incomodo e não quero. - baixando a cabeça e ajeitando a camisa fina.
Joguei a ponta para longe, olhando a noite. Meu Deus, até quando? Não além de agora. Acabou. Caminhamos.
- Vamos para casa? A pé se quiser. - sorrindo olhinhos de criança. Desejo verdadeiro, puro. Fiquei mais irritado ainda.
- Lá não fico mais. Ainda te mato. - louco de vontade nunca tê-lo visto, que desaparecesse.
Chegamos. Fui direto apanhar meus pertences, queria sair de vez logo. Senti perfume no ar e ouvia música. Nunca deveria ter voltado. Tremi.
- Não faça isso comigo! - gritei atordoado, tarde demais. Ela já estava lá, deitada no sofá. Sorriso lânguido na penumbra envenenada de música e desejo.
Minha cabeça girava de medo e excitação. Possuí-a embriagado, desnudo pela volúpia de seus lábios queimando.
Lá fora um cão uivou, levantei e saí. Havia pego um gato e morto. Deixei-o lá para nunca mais. Cães e gatos não deveriam existir no mundo das paixões. Para nunca mais.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

nunca foi

tudo tinha de ser tão simples

uma sala com fogo num tempo frio
uma pele pálida num rosto sombriluminado
e o saciar duma fome ressentida

eu queria tão simplesmente você
nada podia ser tão simples

e nunca foi

domingo, 12 de outubro de 2008

patricinha

NHÁ PRETA DE PEITO CAÍDO
CARREGOU O FILHO NO PESCOÇO TODA A VIDA
TRABALHOU, SE FODEU E PARIU DE NOVO

e você toda alegre e perfumadinha
sem ver um palmo diante do nariz

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O janelão

Mau chegou na Reitoria. Mesma hora de sempre, todo dia. Era aula e gostava. Havia colegas e dois amigos. Esqueceu disso quando entrou, cabeça baixa.

- Filho, não pense assim teu pai. A vida passou dura nele. Não quis fazer aquilo.

- Sei - Mau com os olhos longe.
- Ele ama, duro mas ama. Faz errado, mas pensa fazer certo. Assim aprendeu.
- Sei - indiferente.
- Aceite isso. Você pode mudar, ele não. Assim aprendi.

Subiu a rampa sem ver ninguém. Sentindo só. Bem longe dali, seu futuro. Correu pensando ir atrás.


- Reaja, cara. Você dá pra coisa. Gosta disso.
- Preciso ganhar a vida - Mau pensativo.
- Não abandone. Você é o melhor de nós. Todos sabem disso.
- Tenho família e compromissos.
- Mas tem você?

"Mas tem você?" gritava o corredor quando passou, resfolegante. Encostou na parede para descansar. Viu o janelão.

- Período e dedicação integral. Isso eu quero. Nada feito se não.
- Sei - Mau olhando pé da mesa.
- Tem chance ainda. Deixe escola para depois. Pode progredir aqui.
- Sei - se vendo grisalho e bruto, tocando máquina como hoje. Como seu pai.

"Mas tem você?", berrava agora o prédio todo. Lento foi ao janelão e abriu. Silêncio. Respirou ar.
Viu todos lá embaixo. Seus pais, seus amigos, seu patrão. E si próprio.
Primeiro passou uma perna. Depois outra.
"Nós temos você!", cantavam todos olhando para ele. Seu eu deu as costas e foi embora.

- Não! - gritou quando voou, correndo atrás.

Ninguém tem ninguém.